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Um Conto Real ? Soy Chilena

Por Tamara Colares
Publicado em 23 de agosto de 2023

A maioria das histórias começa pelo "começo".
A minha, posso dizer, começou muito antes de mim, em 1941, em Santiago do Chile. Foi quando nasceu Alberto María: poeta, professor, comunista e, acima de tudo, meu pai. Um homem destinado ao mundo.

Décadas depois, em 1987, esse chileno cruzou a floresta Amazônica fugindo da ditadura de Pinochet. Carregava consigo poemas, sonhos, dores e uma coragem incansável. Em Manaus, conheceu uma socióloga brasileira encantada com seus contos. Daquela união, nasci eu.

Minha infância foi mágica e instável: entre árvores, mudanças de cidade e a constante sensação de perseguição que acompanhava meu pai. De repente, ele sumiu. Uma ligação dizia que havia morrido na Bolívia. Eu tinha sete anos. Mas, um ano depois, o destino pregou uma peça: ele voltou. De barba grande, mala surrada e sacolas cheias de brinquedos paraguaios. "Já não morto mais", como gosto de dizer.

Foram anos difíceis. Ele carregava os fantasmas da ditadura, lembranças de filhos que nunca conheci e pesadelos que o faziam gritar nomes durante a madrugada. Para mim, a ditadura era o verdadeiro "bicho-papão".

Fragmentos do Livro "Quantas Vidas Você Ja Viveu Nesta Vida"(Tamara Colares/ Lançamento 2026).

UM SALTO NO TEMPO...

O Contador de Histórias

Quando eu tinha 8 anos, ele me falava de coisas fantásticas da vida, me falava do mundo lá fora e contava histórias, onde minha mente imaginava cada palavra e transformava em imagens.
Ele me contava o quanto o mundo era belo e que a música e a poesia eram o que lhe davam vida. Dizia que lá fora eu poderia ter um mundo de maravilhas, onde seria uma linda jornada com flores e espinhos. Ele me contava fábulas e, com metáforas, me explicava o quanto a vida também pode ser cruel.

Quando eu fiz 12 anos, ele disse que eu já tinha idade para ouvir uma nova história. Me falou da ditadura chilena e do quanto sofreu: foi perseguido e torturado. Contou sobre seus amigos que não escaparam, sobre os guerrilheiros da Bolívia, da beleza que conheceu no Peru, de seus outros filhos na Argentina e no Chile, das cachoeiras na Venezuela, das comidas picantes do México, do povo pacífico e gentil no Uruguai e dos presentes que sempre trazia do Paraguai. Fiquei assustada e, ao mesmo tempo, curiosa. A lágrima caía em meu rosto, transformando toda a magia de suas histórias antigas. Ele me falou de um mundo que eu não imaginava e dizia: SEJA FORTE!

Aquelas histórias que meus pais me contavam ficaram marcadas em meus pensamentos. E, em sua partida para uma nova vida, eu jurei resgatar cada palavra, cada imagem e cada luta que foi apagada pelo tempo, hoje restando apenas na memória de quem o conheceu.

O Poeta Errante

Ele era conhecido assim...
Largou tudo: casa, família, bens...
E viajava com sua mochila, livros, papel e um lápis.

Ele viveu a vida que escolheu e, entre acertos e erros, foi feliz à sua maneira.
Eu sei que fez sofrer muitos à sua volta. Deixou triste quem não compreendia que existem pessoas que nascem com o espírito livre , um espírito que nada prende e ninguém controla.

Ele viveu na França, Espanha e em tantos outros lugares. Ganhou prêmios, foi reconhecido, respeitado e também desprezado.
Ele era a pessoa mais inteligente, peculiar e louca que eu conheci na vida.

Sempre partia de um dia para o outro, caía no mundo, ficava anos explorando a vida lá fora e depois voltava trazendo um tesouro de histórias, conhecimento e cultura.

No dia 12 de junho de 2003, ele partiu sem dizer adeus desta vez, mas deixou em mim seu maior legado!
A busca pelo final das histórias inacabadas me deixou incompleta ? e poucos me entendem.

Hoje, tenho 29 anos e estou buscando seus passos, apagados pelo vento, pelo tempo...
E, como um grande quebra-cabeça, vou procurando cada lugar que ele me falou, pessoas, músicas, poemas.
Muitas coisas ficaram claras. Agora eu entendi o que ele falava.

O caminho está sendo doloroso, pois abdiquei de tudo o que amava para seguir sua voz.
Hoje sinto a mesma dor que ele sentiu ao estar longe das pessoas que amava.
Me pergunto se, no final, tudo isso irá valer a pena, ou se, caso eu fracasse, meu filho continuará...

A vista da Cordilheira dos Andes é mágica.
A vida é mágica!
Eu vejo tanta beleza, tantas cores, que faz valer a pena qualquer dor.

Sou mulher vivendo em uma selva de pedras, onde só eu sei as dores e alegrias de todos os caminhos que passei.
Escuto uma música e ela diz:
"Se o diabo amassa o pão, você morre ou você come?"
Eu não comi e nem morri, eu fiz amizade com a fome!

Estou vivendo descobertas e o mais fascinante é que, a cada momento, comprovo que aquelas histórias que ele me contava eram ainda mais magníficas do que eu imaginava.

Às vezes queremos seguir em frente a 220 km/h e esquecemos o principal: olhar para os lados. Eu estava com tanta fome de viver que acabei esquecendo um grande pedaço da história: MINHA FAMÍLIA QUE FICOU.

Eu tenho uma mãe também magnífica: artista, poeta, socióloga, antropóloga, ativista e tudo mais de bom que se possa imaginar...
Também tenho tanto o que falar sobre ela!

E como um ciclo vicioso, repetitivo da vida, seguimos os mesmos caminhos, acertos ou erros, como nossos pais.
Mas eu sei do meu propósito e não posso perder o foco!

Um dia irei contar a todos vocês quem foi esse Poeta Errante que, apaixonado pela vida, se enamorou de uma socióloga brasileira.
Um homem na qual eu tenho orgulho de chamar de Pai!

Tamara Colares
Santiago, Chile ? 3 de dezembro de 2017
Fragmentos do Livro "Quantas Vidas Você Ja Viveu Nesta Vida"(Tamara Colares/ Lançamento 2026).

Separação ou Superação?!

Nesse meio tempo, a história já se misturou do meio para o começo e do fim para o meio.
E me perguntam sobre o Chile...
Em 2016, superando uma separação, pedi demissão, entreguei minha casa, dei minhas coisas, peguei meu filho em uma mão e as malas na outra.
Começa ali uma nova vida do zero.
Me sentia culpada pela morte dele, uma culpa que me assombrava desde meus 15 anos.
Meu pai com suas escolhas, antes de morrer, ele abandonou sua casa, entrou em surto e foi viver na rua. Eu so tinha 14 anos, o que podia fazer?
Foi um momento complicado para minha mãe, que segurou muito peso, sabe-se la como ela também não surtou com tantas coisas que viveu.
Era uma sexta feira, eu estava saindo da escola e na porta la estava ele.
Com sua barba grande, estava sujo, com um olhar triste.
Eu não aguentei vê-lo assim e os amigos passando e rindo.
Sai correndo sem grande destino. Por horas fiquei chorando em um banco da praça e no horizonte, ele passa...
A verdade que mais me doí, era que ele estava tentando dizer Adeus.
Foi a última vez que vi meu pai em vida.
Na segunda feira acordo com um sonho.
Estava em um prédio familiar do bairro que morava. Esse prédio começa a cair, os elevadores saltam para o lado e eu desço muito rápido pelas escadas. Sinto que alguém tinha ficado para trás.
Ao conseguir me salvar, vejo aquelas nuvens de fumaça e pó do prédio desmoronando, uma Coruja Branca sai entre as nuvens cinzas.
Neste instante minha mãe me acorda, estávamos na casa de uma amiga dela.
-Tamara, seu pai esta no hospital. Acorda e vamos.
Ao chegar, tinha uma equipe grande de psicólogos etc e tal e a noticia é dita.
Ele já tinha falecido, entrei em lagrimas.
Seu funeral foi demorado, ele não tinha nenhum documento, pois tinha largado a casa, tudo. Seria enterrado como indigente.
Foram 16 dias para ser enterrado.
Tudo Burocracia com sua documentação.
Meu pai! Um dos homens mais inteligentes que eu conheci!
Naquele momento, cadê os amigos o políticos importantes?
Posso dizer o nome de cada politico conhecido, que eu frequentava a casa quando criança, brincava com seus filhos, enquanto meus pais faziam projetos e aconselhavam.
Me atrevo em dizer que sua genialidade era capaz de mudar eleições.
Mas claro, meu pai o Comunista "burro" não queria saber de emprego, ele não ligava para o dinheiro.
Quando faltava algo em casa, ele saia, ia para a faculdade, dava um "aulazinha" e voltava, com a sacola farta.
Para que ele vai querer emprego?
Se seu conhecimento era tão grande, que na hora que ele queria, tinha ali os urubus a se alimentar do seu intelecto.
Mas no dia de sua morte, quase nenhum a contemplar sua partida.

E assim eu cresci!
Vendo que a política é um ninho de cobra. Que você só vale o que tem a oferecer naquele momento, e o quanto a vida de meu pai e minha mãe foi furtada, por planos e enganos.
Eu mesmo cheguei a me enganar com a politica.
Hoje entendo que é um grande jogo.
Mesmo assim, tenho consciência plena que precisamos de politicas públicas justas!
DITADURA NUNCA MAIS!
Como eu, existem varias pessoas que sofreram com o efeito colateral que ultrapassou gerações.

2016, fui morar no Chile.
Posso dizer que foi a melhor decisão da minha vida.
Nenhuma terapia fez por mim, o que viver e sofrer em Santiago fez.
Todos os meus nòs de cabeça foram desfeitos.
A vida do meu pai fez sentido.
A culpa que carreguei por anos se foi,
da mesma forma que um fantasma é exorcizado.

No meio de tudo isso, eu precisava trabalhar.
O mundo era a casa de meu pai.
A vida era o combustível.
Nada mais poético do que eu trilhar o meu próprio caminho e ganhando por isso.
Olha que ironia do destino.
Meu pai andarilho.
O poeta Errante.
Conheceu o mundo com sua arte.
E agora, o que será que ele pensa de sua filha empresaria capitalista?
Tenho certeza, que de onde ele estiver...
Ele deve ter orgulho da pessoa que me tornei!

Segui os seus passos e a verdade é que eu achei muito mais historias
que neste pequeno espaço daria para compartilhar.
Mas vou dar o gostinho de revelar outro grande Spolier...
Minhas irmãs e irmãos estão vivos!
Sim, da mesma forma que ele dizia pra mim que todos morreram, ele também disse
aos outros filhos que eu também não estava vida.
Mas essa historia ficará para outro momento.
O que posso dizer é que,
Em meu sangue corre o sangue de meus pais.
Poetas, escritores, sonhadores.
Sempre senti o Chile me chamando.
E no momento que eu fui, as respostas estavam la.


Soy Chilena!

Fragmentos do Livro "Quantas Vidas Você Ja Viveu Nesta Vida"(Tamara Colares/ Lançamento 2026).

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